Após anos de reivindicações, Recife pode criar Passe Livre para pessoas vivendo com HIV/Aids
Artigo de Kariana Guérios, assessora jurídica da Gestos, publicado originalmente pelo Diario de Pernambuco em 10 de maio de 2022.
Desde 1998 que estou como advogada do serviço de assessoria jurídica gratuita e especializada em Direitos Humanos para pessoas vivendo com HIV/Aids da ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero. Ao longo desses anos, houveram diversos avanços científicos que possibilitaram o surgimento de antirretrovirais de última geração, que melhoraram a condição de saúde das pessoas vivendo com HIV e AIDS (PVHA); medicamentos que são garantidos pelo Sistema Único de Saúde.
Entretanto, independente desses avanços, nos atendimentos às PVHAs que realizo na Gestos, constato diariamente a vulnerabilidade dessas pessoas, não apenas causadas pelo estigma e pelo preconceito que elas enfrentam no mercado de trabalho, nas suas comunidades e inclusive dentro de suas próprias casas, mas também pelas desigualdades estruturais e socioeconômicas que foram agravadas pelas frequentes cessações realizadas pelo INSS nos benefícios assistenciais e previdenciários das PVHAs sem a devida análise social e de saúde; pelo retrocesso das políticas públicas de AIDS (a exemplo do desmonte do Departamento responsável pela resposta à epidemia do HIV/AIDS); pela pandemia do Covid-19; pelo crescimento da inflação e o empobrecimento da população, além dos aumentos recorrentes das passagens no transporte coletivo.
Tais situações contribuem para o abandono do tratamento, adoecimentos (físico e mental) e mortes. Segundo Boletim Epidemiológico em HIV e AIDS 2021, do Ministério da Saúde, Recife é a 4ª capital do NE com maior coeficiente de mortalidade por AIDS. Esse cenário piora cada vez que alguém não pode buscar seus medicamentos, realizar exames, ou ir à uma consulta por não ter dinheiro para pagar passagens de ônibus, circunstância que compromete o tratamento, possibilitando assim, co-infecções por doenças oportunistas (como a tuberculose), bem como novas infecções pelo HIV, uma vez que, nessas condições torna-se difícil alcançar o estágio de “Indetectável” e “Intransmissível”.
Organizações como a RNP+, a Articulação Aids de PE e a Gestos vêm lutando há cerca de 15 anos junto ao legislativo pela implementação do Passe Livre para pessoas de baixa renda vivendo com HIV/Aids, demanda essa, que ainda não foi atendida devido à falta de compromisso político das gestões anteriores com as PVHAs – ferindo assim direitos fundamentais previstos em nossa Constituição Federal, como o direito à vida, à dignidade, à saúde e ao transporte! Mas, parece que esse contexto tem apresentado avanços. Junto ao judiciário, temos garantido esse direito para pessoas vivendo com HIV e AIDS, através de ações ajuizadas pela assessoria jurídica da Gestos. Somente nos últimos dois anos, obtivemos mais de 10 decisões judiciais favoráveis.
Contudo, é no Legislativo, mais precisamente na Câmara dos Vereadores do Recife, onde está acontecendo uma ampla discussão sobre o tema. Nesse momento, está tramitando o Projeto de Lei Ordinária (PLO) 370/2021, que busca estabelecer o Passe Livre para PVHAs de baixa renda vivendo no Recife. O projeto tem se mostrado perfeitamente possível e aplicável na capital pernambucana e já foi aprovado pelas comissões de Saúde, de Direitos Humanos e Cidadania e de Acessibilidade e Mobilidade Urbana. Agora, ele aguarda o parecer da Comissão de Legislação e Justiça e, caso aprovado, se encaminhará para a Comissão de Finanças e Orçamento, para então seguir para votação no pleno da Câmara dos Vereadores.
O Recife está tendo a oportunidade de tornar real aquilo que não foi feito nos últimos 15 anos: construir uma resposta ao HIV que seja multidisciplinar e compreenda a questão também de um ponto de vista socioeconômico, que garanta a continuidade do tratamento, promovendo assim o bem-estar social de grupos diariamente invisibilizados e estigmatizados, bem como a diminuição de novas infecções na cidade. Para nós, da sociedade civil organizada, esse PLO pode ser uma nova oportunidade para demonstrar o compromisso, ou o descaso dos nossos e das nossas representantes com a dignidade de quem mais precisa do Estado. Esperamos que tomem a decisão certa quando chegar a hora!
Sobre o PLO 370/2021:
Construído pela sociedade civil e protocolado pelo mandato do vereador Ivan Moraes (PSOL) na Câmara do Recife, o projeto de lei Ordinária de número 370/2021 busca instituir a gratuidade (Passe Livre) no sistema de transporte público coletivo para pessoas de baixa renda com o Vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV/AIDS), mediante subsídio integral de até 30 viagens por mês no valor do anel A. O PLO objetiva promover a inclusão social e garantir o acesso ao transporte para garantir a continuidade do tratamento.
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