Como superar a apatia do modelo atual de financiamento sustentável
Por Claudio Fernandes*
Publicado originalmente em blog.venro.org
O desafio ambiental que a humanidade enfrenta é sem precedentes em escala e consequências. Por muito tempo, as visões macroeconômicas ofuscaram a microfísica do desenvolvimento econômico, escreve o economista Claudio Fernandes após a Conferência de Sustentabilidade de Hamburgo.
A Conferência de Sustentabilidade de Hamburgo (HSC), que ocorreu em sua primeira edição nos dias 7 e 8 de outubro, é mais uma iniciativa do governo alemão em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para contribuir com a implementação da Agenda 2030.
É importante reconhecer que, desde 2016, o Ministério do Desenvolvimento Econômico e Cooperação da Alemanha (BMZ) tem colaborado seriamente para expandir o alcance e a profundidade do conhecimento sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), começando com a iniciativa Partners for Review, que, entre outras coisas, também inspirou a metodologia do Relatório Luz brasileiro – uma ferramenta de monitoramento bem-sucedida publicada pela Gestos e produzida pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, uma rede de 64 Organizações Não Governamentais.
Essa conferência de alto nível, aberta pelo chanceler alemão Olaf Scholz na presença de vários chefes de Estado, do presidente do Banco Mundial e da diretora-geral do FMI, foi bastante extensa. Foi dividida em dois ramos principais de discussões e demonstrações de ações. O financiamento foi o tema dominante, abrangendo as conversas sobre “Nova Aliança”, “Futuro” e “Soluções”, além de fazer parte das mesas redondas de Aceleradores que apresentaram exemplos positivos de inovação em financiamento e conexão de projetos a investidores – como turismo em Zanzibar, biometano de Lucresta, fintech mGurush de Uganda, entre outros.
As organizações da sociedade civil tiveram uma participação limitada nas falas do programa oficial, que contou com uma significativa presença do setor privado, além de organizações filantrópicas e governamentais – particularmente da Europa e África, embora todas as regiões do mundo estivessem representadas, e de termos conseguido intervir de forma suficiente ao longo do evento.
No entanto, a conferência foi projetada para proporcionar oportunidades de networking, incluindo a oferta de um aplicativo móvel (que, infelizmente, apresentou problemas no meu iPhone) a fim de coletar ideias para tentar desatar o nó do financiamento a fim de acelerar a transição para o desenvolvimento sustentável e a resiliência climática.
Falta de vontade no financiamento internacional é evidente
O que se tornou óbvio, nove anos após a 3ª Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), é que, apesar de todos os esforços e boas intenções, o capital privado não apareceu nem de forma suficiente nem oportuna para co-financiar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Empresas de todos os tamanhos não limparam suas cadeias de produção e suprimento, e os países desenvolvidos ou exportaram sua pegada ou praticaram contabilidade criativa por meio de compensações financeiras, como o etéreo mercado de carbono. Nem mesmo a igualdade de gênero foi implementada em um ritmo considerável em todas as instituições financeiras, aquelas que poderiam alterar seus procedimentos com mais facilidade.
Outra evidência que surgiu dos debates da HSC é a falta de vontade para reformas profundas na arquitetura financeira internacional, que otimizaria e colocaria capital nas mãos de quem está mais capacitado para implementar os ODS, em vez de manter o capital nas mãos de grandes corporações, que são, em grande parte, parte do problema – como a produção de plástico e setores dependentes de combustíveis fósseis, etc.
Há uma lacuna superlativa entre os bilhões de dólares disponíveis nos bancos de desenvolvimento multilaterais e os territórios e suas comunidades. O mesmo se aplica aos recursos nos fundos globais. Os grandes projetos financiados por Bancos de Desenvolvimento Multilaterais, seja pelo Banco Mundial, Banco Asiático, Banco Africano ou Novo Banco de Desenvolvimento, acabam afetando comunidades e criando repetidamente externalidades sociais e ambientais negativas.
Essa é apenas uma razão para tanta desconfiança na arena de financiamento para o desenvolvimento. Além disso, além das plataformas governamentais usuais com seus arranjos políticos complexos e erráticos, não há intermediação financeira entre a oferta de capital e o nível microeconômico de desenvolvimento, que é onde a mudança realmente ocorre.
O que é necessário para transformar a arquitetura financeira
Além de reformar a estrutura de governança há muito esperada das Instituições de Bretton Woods e pôr fim de uma vez por todas ao acordo informal sobre suas nomeações executivas, outra mudança significativa que precisa ocorrer é uma reavaliação profunda da mentalidade ideológica comum que orienta suas decisões. A economia ortodoxa baseada em conceitos ultrapassados dificulta a formulação de políticas eficazes.
No painel de abertura da HSC, foi surpreendente ouvir a Sra. Kristalina Georgieva destacar que o Fundo Monetário Internacional (FMI) dá “espaço para os países crescerem”, contradizendo publicamente a prática contínua do fundo de defender condicionalidades que restringem o espaço fiscal dos países em desenvolvimento, alimentando um ciclo de endividamento, baixa produtividade e dependência de commodities, um desenho neocolonial em benefício da extração de valor. Sem falar no sistema de cotas e nas sobretaxas de empréstimos para os países menos desenvolvidos.
Contrariamente à narrativa de hegemonia e ao sistema de crenças da economia política, a economia mundial não é a terra da fantasia de mercados livres, múltiplas empresas impulsionadas pela inovação e instituições que obedecem à lei. Seja em nível nacional ou internacional, a economia é dominada e politicamente condicionada por corporações e cartéis bem organizados, com tentáculos ávidos por máxima extração de lucro, atuando muitas vezes com má-fé para garantir ganhos desproporcionais, como o caso pós-Covid da inflação, causada principalmente pelo aumento de preços corporativos. A negociação para a 4ª Conferência FfD mudará sua abordagem com base em evidências ou insistirá em narrativas míticas?
O status quo não avançará a agenda de sustentabilidade
Transformar a arquitetura financeira requer uma boa dose de experiência interdisciplinar eficaz. O desafio ambiental que a humanidade finalmente percebeu que enfrenta é realmente sem precedentes em escala e consequências. Como foi repetido muitas vezes, embora raramente colocado em prática, o status quo não avançará a agenda de sustentabilidade.
Precisamos criar novos caminhos para alavancar o importante trabalho de inovação impulsionada pela comunidade, trabalho de cuidados não remunerado e arranjos microeconômicos baseados em soluções para as necessidades reais das populações dentro de seus territórios. Isso é o que fixará as pessoas à terra e reduzirá a imigração, uma das externalidades da crescente desigualdade dentro do atual regime de desenvolvimento.
Por muito tempo, as visões macroeconômicas sozinhas ofuscaram a microfísica do desenvolvimento econômico. Para mudar isso, deve haver outro tipo de arranjo institucional e planejamento criativo para superar a lassidão do modelo atual de financiamento sustentável.
* Claudio Fernandes é economista da Gestos e do GT 2030 Agenda