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É pela vida das mulheres!

É pela vida das mulheres!

Uma criança de 11 anos engravida após ser vítima de um estupro e teve seu direito ao aborto legal violado, em Santa Catarina, sendo coagida por uma magistrada e uma promotora do Ministério Públcio estadual a levar a gestação adiante e chegando a ser encaminhada a um abrigo por determinação judicial, para evitar a interrupção da gravidez. Em São Paulo, uma conhecida atriz de 21 anos teve informações sigilosas vazadas por uma profissional de saúde a colunistas de fofoca, após entregar uma criança fruto de um estupro à adoção. 

O caso da menina veio a público após uma reportagem do Portal Catarinas em parceria do The Intercept Brasil, publicada na segunda-feira (20), revelando a revoltante sequência de violações a que a criança e sua família têm sido submetidas. Já o caso da atriz foi divulgado inicialmente em uma publicação do jornalista Matheus Baldi (SBT), no dia 24 de maio, e repercutido pela youtuber Antonia Fontanelle, na última quinta-feira (23), quando a influenciadora incitou comentários perversos contra a vítima.

Ambas as histórias tiveram grande repercussão e mobilizaram organizações feministas de todo o país a protestarem em defesa do direito ao aborto legal, que no Brasil é garantido por lei desde 1940, em caso de gravidez fruto de estupro, ou quando oferece risco à vida da pessoa gestante. Desde a última semana a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto tem convocado manifestações nas principais cidades brasileiras; em Recife, os grupos feministas que constroem a Frente realizaram, na terça-feira (28), um ato simbólico em frente ao Tribunal de Justiça de Pernambuco (no bairro de Santo Antônio), para protestar em favor da vida e dos direitos de meninas, mulheres e pessoas com útero.

 “Decidimos fazer pelo momento grave que vivemos”, disse a coordenadora de Programas Institucionais da Gestos, Jô Meneses, que representou a instituição durante o ato. “Há muito tempo denunciamos como a violência sexual e o estupro vulnerabilizam as mulheres tanto para o HIV/AIDS e outras ISTs, quanto para a gravidez indesejada e isso abre portas para a penalização de meninas e mulheres, sobretudo neste momento em que grupos conservadores e fundamentalistas atuam para retirar nossos direitos básicos”, explicou.

Após a manifestação simbólica, a Frente Pernambuco Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto protocolou uma nota de repúdio junto ao Ministério Público da Federal (MPF), manifestando suas preocupações e licitar providências em relação aos últimos acontecimentos que envolvem o acesso das mulheres, das meninas e de todas as pessoas que podem gestar ao direito de realizar aborto nas situações previstas em lei.

Qualquer pessoa com útero que tenha direito ao aborto legal pode solicitá-lo em unidades de saúde (sem a necessidade de intervenção judicial) e quem recorre ao serviço de saúde deve ter assegurado o direito ao sigilo – sobretudo quando o caso está relacionado às consequências de uma violência sexual. Contudo, não foi o que se verificou em ambas as situações.

No caso da criança de 11 anos, ainda se verificou a alienação dos seus direitos, quando a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora de Justiça Mirela Dutra Alberton, lhe informaram (falsamente) que a interrupção da gravidez já não era mais possível pois ela já havia passado da 20ª semana de gestação e, por isso, o aborto configuraria crime de homicídio, chegando a questionar se a vítima poderia “suportar mais um pouquinho”, para aumentar a chance de sobrevida do feto e se “o pai da criança concorda [com o aborto]”.

Em março deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou o documento Abortion Care Guideline (Diretrizes de Atenção ao Aborto), que atualiza as recomendações para protocolos de abortamento e enfatiza que os limites gestacionais não são baseados em evidências científicas e estão associados ao aumento das taxas de mortalidade materna e a maus resultados de saúde. Desde 2016, o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher vem denuncinando que a gravidez infantil forçada é um tratamento cruel e degradante, equivalente à tortura.

Para Jô,  “o judiciário, de maneira flagrante, confronta a legislação e secundariza o estupro; no outro caso, o próprio serviço de saúde que deveria acolher e garantir o sigilo, não o fez”. Ela aponta ainda que, “em ambos os casos, houve violência institucional” e “o que se promove é o sofrimento e a revitimização de ambas as vítimas, em função do horror que é uma criança de 11 anos e uma mulher serem estupradas, engravidarem e não terem o direito de seguirem legalmente com aquilo que elas querem fazer, enquanto todos acham que os corpos delas pertencem à mídia, à religião, à profissionais conservadores e não a elas, que sofreram a maior das violências: o estupro. Isso é uma prova grande da misoginia que há nesse país.”

Após a repercussão do caso de Santa Catarina, a juíza Joana Ribeiro Zimmer foi afastada do caso (após sua repercussão) e transferida para a comarca de Brusque, no Vale do Itajaí, em função de uma promoção. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de Santa Catarina estão apurando a conduta da magistrada e o Ministério Público Federal (MPF) informou nesta terça-feira (21) que está investigando o atendimento feito pelo hospital de Florianópolis. 

Organizações como a Gestos julgam ser inadmissível que este tipo de violação de direitos seja praticada pelas instituições de justiça em um país onde, a cada dia, cerca de 180 mulheres e meninas são estupradas e 500 são vítimas de algum tipo de violência. Onde a cada aborto legal feito em meninas de 14 anos ou menos, outras 11 sejam hospitalizadas em decorrência de complicações durante o aborto (espontâneo ou provocado). Ainda mais inadmissível é que a juíza responsável por uma série de violações e alienações de direitos seja afastada do caso com uma promoção, apenas legitimando as práticas de violência institucional.

É igualmente inaceitável que a magistratura seja infectada por ideias ultra conservadoras e fundamentalistas, que muito se preocupam em garantir o nascimento de um feto gerado através de um ato hediondo, e pouco se preocupa com a vida das pessoas com útero que o Estado condena ao sofrimento, à criminalização e ao julgamento público. É preciso compreender que estupradores não são pais, assim como crianças não são mães; que nenhuma pessoa precisa passar por isso e que assegurar o direito ao aborto é uma questão de saúde pública. É pela vida das mulheres!

 

NOTA DA FRENTE PERNAMBUCO CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

 

Ao Ministério Público Federal

Recife, 29 de junho de 2022.

 

Excelentíssimas senhoras,

Excelentíssimos senhores:

 

Nós, cidadãs e ativistas da Frente Pernambuco contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, recorremos ao Ministério Público Federal para trazer nossas preocupações, nosso repúdio, bem como solicitar providências em relação aos últimos acontecimentos que envolvem o acesso das mulheres, das meninas e de todas as pessoas que podem gestar ao direito de realizar aborto nas situações previstas em lei: quando existe risco para a saúde da gestante, quando os fetos são anencéfalos, e para gravidez decorrente de estupro.

 

I – O caso da menina de Santa Catarina

Situação amplamente repercutida pela imprensa, e denunciada por diversos setores sociais através de cartas, notas e ações, colocou em evidência a dificuldade que as mulheres e as meninas encontram para realizar o aborto legal em nosso país.

A ação coordenada pela juíza Joana Zimmer e pela Promotora Mirela Dutra Alberton para impedir uma criança de ter acesso a esse direito (no caso de estupro, previsto em lei desde os anos 1940), perpetrou uma série de violências psicológicas contra a menina e a mãe, privou a vítima de liberdade e dos cuidados da mãe para manter e resguardar a saúde de um feto – indesejado pela garota, já que a gravidez é produto de um estupro -, sem levar em conta a vida e a saúde física e psicológica da vítima.

A criança, ao procurar justiça com a sua mãe, foi revitimizada, situação que se enquadra explicitamente na Lei 14425/2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer. Diante do grave ocorrido, e entendendo que o judiciário brasileiro como um todo e este órgão a quem recorrermos em particular, não irá, em suas práticas cotidianas, abrir mão da ciência, das leis, ou dificultar o acesso aos direitos da cidadania para operar a partir de valores morais ou religiosos – que devem ser valores individuais privados e não podem ser impostos no exercício profissional e público – solicitamos que o Ministério Público Federal:

  1. Contribua, com sua atuação, para que as servidoras públicas envolvidas no caso respondam perante a lei pelas violações perpetradas por elas contra a menina e contra a mãe;
  2. Contribua, com a sua atuação, para que os setores do judiciário que lidam com o acesso a direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e de todas as pessoas que podem gestar recebam formação continuada para que possam melhorar o desenvolvimento do seu trabalho.

 

II – A Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, do Ministério da Saúde

O Governo Bolsonaro, através do Ministério da Saúde (MS), traça estratégias para dificultar, constranger, criminalizar mulheres, meninas e todas pessoas que podem gestar que buscam o direito ao aborto legal. Em agosto de 2020 o MS editou a portaria N° 2.282/2020 – Diário Oficial da União – que obriga médicos e profissionais de saúde a notificarem a polícia os casos de aborto por estupro, o que acarreta medo, dificuldade para que, principalmente as crianças e meninas, possam acessar o aborto legal, já que a maioria desse tipo de estupro ocorre no interior da família.

A Portaria induz os profissionais a quebrar o sigilo médico e desrespeita o Código Penal, que não prevê nenhum tipo de documentação para o exercício do direito ao aborto legal. Ressalta-se ainda que os serviços já notificam todos os casos que chegam de violência contra as mulheres, conforme previsto na Lei 10.778/2004. Os dados gerados por tais notificações no âmbito da saúde já são o suficiente para fomentar as políticas públicas, sem que haja necessidade de novas imposições que só acabam revitimizando as mulheres, meninas e todas as pessoas que podem gestar.

Em junho deste ano, o Ministério da Saúde elaborou a cartilha intitulada “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, disponível no seguinte link: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_prevencao_avaliacao_conduta_abortamento_1edrev.pdf.

E, em mais um ataque frontal aos direitos das mulheres, meninas e todas as pessoas que podem gestar, a cartilha afirma que “não existe aborto ‘legal’” no Brasil. Segundo o documento, “todo aborto é um crime” e defende que os casos em que há “excludente de ilicitude” sejam comprovados após “investigação policial”.

Entendemos que essa cartilha é mais um mecanismo do governo para constranger e impedir que as mulheres e meninas tenham acesso ao aborto legal, pautado por certos valores morais, ideológicos, em detrimento da lei, da ciência, da medicina, e, principalmente, desconsiderando a laicidade do estado.

Nesse cenário, as entidades feministas, organizações médicas, dentre outros setores têm divulgado documentos e notas rechaçando esta norma técnica, entre elas:

ANIS – Instituto de Bioética de Brasíliahttp://cepia.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Anis_Esclarecimentos-sobre-o-documento-%E2%80%9CAt en%C3%A7%C3%A3o-t%C3%A9cnica-para-preven%C3%A7%C3%A3o-avalia%C3%A7%C3%A3o-e-co nduta-nos-casos-de-abortamento%E2%80%9D.pdf

FEBRASGO -Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1466-nota-sobre-o-documento-atencao-tecnica-para-prevencao-avaliac ao-e-conduta-nos-casos-de-abortamento-ministerio-da-saude-2022

ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva https://www.abrasco.org.br/site/noticias/nota-de-repudio-ao-manual-de-atencao-ao-aborto-do-ministerio-dasaude/66576/

 

Diante dessa outra situação, que fere o direito das mulheres, solicitamos que o Ministério Público Federal:

  1. Contribua, com a sua atuação, para evitar mais um retrocesso de direto no Brasil que estes e outros retrocessos sigam em curso;
  2. Contribua, com sua atuação, no sentido de orientar os Ministérios Públicos Estaduais a verificar e monitorar os serviços de aborto legal existentes nos estados, para que todos eles funcionem em conformidade com a lei;

2.1 Acionando, quando necessário, os governos e o SUS para providenciar serviços de aborto legal em todas as grandes cidades brasileiras com vistas a facilitar o pleno exercício deste direito, o acesso das mulheres, das meninas e de todas as pessoas que podem gestar, aos serviços.

Ressaltamos que, em estudo realizado pela Rede Feminista de Sexualidade e Saúde, entre os anos de 2010 e 2019, uma menina se torna mãe a cada 20 minutos no Brasil. Isso demonstra que os direitos das crianças e adolescentes são violados todos os dias no Brasil.

O Ministério Público Federal pode, além do já solicitado, contribuir para que o governo Brasileiro, ao invés de gastar tempo e recursos para impedir a realização do direito ao aborto legal, implemente políticas públicas de educação, cultura, lazer e orientação sexual nas escolas. Crianças devem brincar e estudar, e não devem ser mães.

 

“Nenhuma menina, mulher ou pessoa com capacidade de gestar deve morrer, ser presa, humilhada ou maltratada por ter feito um aborto.”

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